02/04/2005

LFV1

Esse blog não seria meu blog se não tivesse ao menos esse texto do LFV.Dispensa comentários, é básico.
Mãos
Luis Fernando Veríssimo
"Examine sua mão. Coisa estranha, não é? As mãos nos pertencem e ao mesmo tempo não nos pertencem. Parecem Ter vida e opiniões próprias. Quantas vezes você já surpreendeu suas mãos num gesto impensado ou num lugar em que você não planejava colocá-las? Muitas vezes suas mãos parecem estar enfatizando o que você diz e na verdade podem estar contrariando você, acenando freneticamente para se fazerem ouvir. Como boas e eficientes empregadas, elas fazem os serviços essenciais sem serem mandadas. Empurram os óculos para cima do nariz, coçam onde é preciso, etc.. Se você é atacado, elas erguem-se em sua defesa, automaticamente. Mas há sempre a ameaça implícita de uma rebelião. Suas mãos tem – em suas mãos por assim dizer – poder de embaraçá-lo em público, deixando cair o copo no carpete ou pousando por conta própria, em algum joelho comprometido. Nossos pés são regiões remotas e pouco conhecidas com os quais nenhuma intimidade é possível. Nossas mãos, ao contrário, nos dão banho! Mas nem assim nos sentimos perfeitamente à vontade com elas. As mãos são capazes de feitos estonteantes. Alguns batem à máquina, ou no teclado do computador, com os dez dedos. Outras tocam Liszt e até coisas mais difíceis no piano. Pintam cenas de batalhas em cabeças de alfinetes. E como você e eu, ao contrário dos outros, jamais exploramos toda a potencialidade das nossas mãos – a coisa mais complicada que eu faço com as minhas é abotoar a camisa -, elas fatalmente se revoltarão um dia. Nos pegarão pelo pescoço. Ou farão gestos obscenos para dois PMs e depois não moverão um dedo para nos defender.
***
Sir Isaac Newton disse que a existência do dedão era prova suficiente da existência de Deus. Isto, é claro, antes da Isadora Ribeiro. A civilização começou com o dedão opositor, com a junta giratória que permite ao Pai de Todos juntar se com os outros para pegar uma borboleta ou um tacape. Sem um dedão o homem não teria uma história nem conseguiria tocar guitarra. Depois do dedão o mais importante é o indicador é o que se usa nas tarefas indispensáveis para a sobrevivência da sociedade, como limpar o nariz, chamar o elevador, pedir uma Brahma. Mas também é o dedo da acusação e da delação. Utilidade indiscutível, caráter zero.
Pouco se sabe sobre o terceiro dedo. O “Magrão”, o Boa Vida. É o mais comprido de todos, mas não tem nenhuma função específica, só vai os outros vão. Já seu vizinho existe por uma razão. Deus criou o dedão para libertar o homem e o anelar- o dedo do anel- para lembrá-lo que sua liberdade é limitada, pelo casamento e por outras instituições sociais e pela própria vaidade. O mindinho se chama, oficialmente, “Auricular” porque existe só para limpar a orelha. Diferente do terceiro dedo, no entanto, o mindinho transforma em virtude sua inutilidade. Assumiu sua frivolidade. É o símbolo de delicadeza afetada, hipocrisia e alienação quando se mantém levantado, não importa o que os outros estejam fazendo. Se em vez do dedão tivéssemos desenvolvido um mindinho opositor, a história do mundo seria outra, divertidíssima.
***
Nossas mãos são nossas RPs. Cuidam de nossa vida social. São elas que cumprimentam, abanam de longe, batem nas costas, aplaudem. As duas têm a mesma função cultural, mas geralmente só uma sabe escrever. São nossas primeiras armas. No amor, são nossas forças avançadas. As que exploram o terreno, desativam as minas, amolecem a defesa. Quando duas pessoas se amam, é porque suas mãos já se amaram demais. O amor começa quando as mãos estão saciadas.
***
O corpo é uma antiga usina de transformação, uma indústria pesada. As mão são pós-industriais.
***
E no fim, por mais que desconfiemos delas, nós somos as nossas mãos. Cara e nome não querem dizer nada, nossa identidade mesmo está nas impressões digitais."

2 comentários:

Anônimo disse...

Hmm I love the idea behind this website, very unique.
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Anônimo disse...

Your site is on top of my favourites - Great work I like it.
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LFV1

Esse blog não seria meu blog se não tivesse ao menos esse texto do LFV.Dispensa comentários, é básico.
Mãos
Luis Fernando Veríssimo
"Examine sua mão. Coisa estranha, não é? As mãos nos pertencem e ao mesmo tempo não nos pertencem. Parecem Ter vida e opiniões próprias. Quantas vezes você já surpreendeu suas mãos num gesto impensado ou num lugar em que você não planejava colocá-las? Muitas vezes suas mãos parecem estar enfatizando o que você diz e na verdade podem estar contrariando você, acenando freneticamente para se fazerem ouvir. Como boas e eficientes empregadas, elas fazem os serviços essenciais sem serem mandadas. Empurram os óculos para cima do nariz, coçam onde é preciso, etc.. Se você é atacado, elas erguem-se em sua defesa, automaticamente. Mas há sempre a ameaça implícita de uma rebelião. Suas mãos tem – em suas mãos por assim dizer – poder de embaraçá-lo em público, deixando cair o copo no carpete ou pousando por conta própria, em algum joelho comprometido. Nossos pés são regiões remotas e pouco conhecidas com os quais nenhuma intimidade é possível. Nossas mãos, ao contrário, nos dão banho! Mas nem assim nos sentimos perfeitamente à vontade com elas. As mãos são capazes de feitos estonteantes. Alguns batem à máquina, ou no teclado do computador, com os dez dedos. Outras tocam Liszt e até coisas mais difíceis no piano. Pintam cenas de batalhas em cabeças de alfinetes. E como você e eu, ao contrário dos outros, jamais exploramos toda a potencialidade das nossas mãos – a coisa mais complicada que eu faço com as minhas é abotoar a camisa -, elas fatalmente se revoltarão um dia. Nos pegarão pelo pescoço. Ou farão gestos obscenos para dois PMs e depois não moverão um dedo para nos defender.
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Sir Isaac Newton disse que a existência do dedão era prova suficiente da existência de Deus. Isto, é claro, antes da Isadora Ribeiro. A civilização começou com o dedão opositor, com a junta giratória que permite ao Pai de Todos juntar se com os outros para pegar uma borboleta ou um tacape. Sem um dedão o homem não teria uma história nem conseguiria tocar guitarra. Depois do dedão o mais importante é o indicador é o que se usa nas tarefas indispensáveis para a sobrevivência da sociedade, como limpar o nariz, chamar o elevador, pedir uma Brahma. Mas também é o dedo da acusação e da delação. Utilidade indiscutível, caráter zero.
Pouco se sabe sobre o terceiro dedo. O “Magrão”, o Boa Vida. É o mais comprido de todos, mas não tem nenhuma função específica, só vai os outros vão. Já seu vizinho existe por uma razão. Deus criou o dedão para libertar o homem e o anelar- o dedo do anel- para lembrá-lo que sua liberdade é limitada, pelo casamento e por outras instituições sociais e pela própria vaidade. O mindinho se chama, oficialmente, “Auricular” porque existe só para limpar a orelha. Diferente do terceiro dedo, no entanto, o mindinho transforma em virtude sua inutilidade. Assumiu sua frivolidade. É o símbolo de delicadeza afetada, hipocrisia e alienação quando se mantém levantado, não importa o que os outros estejam fazendo. Se em vez do dedão tivéssemos desenvolvido um mindinho opositor, a história do mundo seria outra, divertidíssima.
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Nossas mãos são nossas RPs. Cuidam de nossa vida social. São elas que cumprimentam, abanam de longe, batem nas costas, aplaudem. As duas têm a mesma função cultural, mas geralmente só uma sabe escrever. São nossas primeiras armas. No amor, são nossas forças avançadas. As que exploram o terreno, desativam as minas, amolecem a defesa. Quando duas pessoas se amam, é porque suas mãos já se amaram demais. O amor começa quando as mãos estão saciadas.
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O corpo é uma antiga usina de transformação, uma indústria pesada. As mão são pós-industriais.
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E no fim, por mais que desconfiemos delas, nós somos as nossas mãos. Cara e nome não querem dizer nada, nossa identidade mesmo está nas impressões digitais."